domingo, 1 de junho de 2014

Hantavirose: Aspectos clínicos, diagnóstico, patogenia e tratamento



Agente etiológico

Vírus do gênero Hantavirus, da família Bunyaviridae, sendo o único bunyavírus que não é um arbovírus. Nas Américas, existem duas linhagens de hantanvírus: uma patogênica, que está associada à ocorrência de casos de SCPH, pois foram identificadas em roedores e em pacientes, e outra que, até o momento, só foi detectada em roedores silvestres, ainda sem evidências de causar a doença em seres humanos. Atualmente, são conhecidas 16 variantes de hantavírus associados à transmissão da SCPH nas Américas. Dentre eles, estão descritos os vírus Sin Nombre (Estados Unidos), Choclo (Panamá) e Andes (Argentina e Chile). No Brasil, foram identificadas sete variantes, sendo cinco associadas com a SCPH (Araraquara, Juquitiba, Castelo dos Sonhos, Anajatuba e Laguna Negra) e duas (Rio Mearim e Rio Mamoré), até o momento, só foram detectadas em roedores. Esses vírus possuem envelope de dupla capa de lipídios, sendo, portanto, suscetíveis a muitos desinfetantes, como os formulados com base em compostos fenólicos, solução de hipoclorito de sódio a 2,5%, lisofórmio, detergentes e álcool etílico a 70%. Sua sobrevida, depois de eliminado no meio ambiente, ainda não é totalmente conhecida. Pressupõe-se que, em ambiente sob a ação da luz solar, o vírus sobreviva por até seis horas; já em ambientes fechados e que não recebem luz do sol e ação de ventos, o vírus pode permanecer ativo no ambiente por até três dias.

Reservatórios

Roedores silvestres são os prováveis reservatórios de hantavírus. Cada tipo de vírus parece ter tropismo por uma determinada espécie de roedor e somente a ela. Possivelmente, os hantavírus evoluíram com os respectivos hospedeiros reservatórios, o que determinou essa espécie-especificidade. Os hantavírus conhecidos no Hemisfério Sul têm como reservatórios roedores da subfamília Sigmodontinae, enquanto que, no Hemisfério Norte, as subfamílias Sigmodontinae e a Arvicolinae são as envolvidas na transmissão desses agentes.

Patogenia

Os mecanismos patogenéticos das infecções pelo hantavírus que levam à FHSR ou SCPH parecem originar de exagerada resposta imune a esses microrganismos. Estes, não parecem levar à destruição das células que infectam e, por si só, não induzem ao aumento da permeabilidade vascular. A gravidade da doença aumenta após o surgimento da resposta imune. O quadro clínico e anátomo-patológico sugerem a ocorrência de distúrbio funcional na permeabilidade capilar pulmonar ou renal, reversível após o tratamento clínico adequado. No caso da SCPH, estudos imuno-histoquímicos em tecido pulmonar mostram a extensa distribuição de antígenos virais em células endoteliais, sem evidências de necrose celular. Os antígenos virais também encontram-se presentes em outros órgãos, tais como, coração e tecido linfóide. Nos pulmões, há infiltração considerável de linfócitos TCD8, que também encontram-se presentes no sangue periférico, sob a forma de linfócitos atípicos. Essas células, depois de ativadas, são capazes de produzir citocinas que atuarão diretamente sobre o endotélio vascular ou estimular macrófagos locais a produzirem mais citocinas como, o fator de necrose tumoral, a interleucina 1, o interferon gama, o fator ativador de plaquetas e os leucotrienos; essas substâncias, ao aumentarem a permeabilidade vascular, levam a maciça transudação de líquidos para o espaço alveolar, desencadeando edema pulmonar e insuficiência respiratória aguda. Os anticorpos, particularmente os da classe IgM, surgem rapidamente no curso da infecção e facilitam o diagnóstico em fase precoce da doença1. Com o clareamento viral, a ativação do sistema imune desaparece e as células endoteliais recuperam a sua integridade funcional. Na enfermidade causada pelo vírus Andes, os estudos imuno-histoquimicos aplicados ao tecido pulmonar, têm demonstrado a distribuição antigênica mais extensa, o que pode explicar a maior transmissão respiratória inter-humana desse patógeno. As doenças causadas pelos hantavírus freqüentemente cursam com trombocitopenia (mais de 80% dos casos). A sua patogênese parece deber-se ao fato de esses vírus possuírem a capacidade de aderir às plaquetas sanguíneas, através de receptores de integrina (B3), desencadeando sua retirada da circulação.

Fase Prodrômica ou Inespecífica

Observa-se febre, mialgia, dor dorso-lombar, dor abdominal, cefaleia intensa e sintomas gastrointestinais como náuseas, vômitos e diarreia. Esse quadro inespecífico dura cerca de um a seis dias, podendo se prolongar por até 15 dias e regredir. Quando surge tosse seca, ao final da primeira fase, tem-se que suspeitar da possibilidade de ser o início de uma forma clínica mais severa, a síndrome cardiopulmonar por hantavírus. Os achados laboratoriais mais comuns nessa fase são linfócitos atípicos >10%, plaquetopenia (<150 .000="" 20.000="" at="" citos="" com="" desvio="" esquerda="" hemoconcentra="" leuc="" normais="" o="" ou="">45%), raio X normal ou com infiltrados difusos, uni ou bilaterais.

Fase Cardiopulmonar

É caracterizada pelo início da tosse seca, acompanhada por taquicardia, taquidispneia e hipoxemia. Essas manifestações podem ser seguidas por rápida evolução para edema pulmonar não cardiogênico, hipotensão arterial e colapso circulatório. A radiografia do tórax habitualmente demonstra infiltrado intersticial difuso bilateral, que rapidamente evolui com enchimento alveolar, especialmente nos hilos e nas bases pulmonares. Derrame pleural, principalmente bilateral, de pequena magnitude, é comum. A área cardíaca é normal. O comprometimento renal pode surgir, mas em geral é leve a moderado, embora possa evoluir para insuficiência renal. A taxa de letalidade é elevada, em torno de 40%. O óbito ocorre, mais comumente, entre quatro a seis dias após o início dos sintomas. Nessa fase, os achados laboratoriais e radiológicos encontrados são: leucocitose, neutrofilia com desvio à esquerda, com formas jovens; linfopenia; hemoconcentração; plaquetopenia; redução da atividade protrombínica e aumento no tempo parcial de tromboplastina, fibrinogênio normal, elevação nos níveis séricos de TGO, TGP e DHL, hipoproteinúria, albuminemia, proteinúria; hipoxemia arterial; raio X com infiltrado pulmonar bilateral, podendo ocorrer derrame pleural, uni ou bilateral.

Doença por hantavírus em Crianças

Sinais e Sintomas

Início abrupto com febre elevada (de 38°C a 40°C), mialgias, principalmente nas extremidades, e dor abdominal, acompanhada, ou não, de cefaleia, náuseas e vômitos.

Achados Laboratoriais

Dos 101 casos registrados na faixa etária de um a 19 anos, o achado laboratorial mais importante, registrado em 50% dos casos, foi hematócrito >45%.

Formas de transmissão

A infecção humana ocorre mais frequentemente pela inalação de aerossóis, formados a partir da urina, fezes e saliva de roedores infectados. Outras formas de transmissão, para a espécie humana, foram também descritas:
• percutânea, por meio de escoriações cutâneas ou mordedura de roedores;
• contato do vírus com mucosa (conjuntival, da boca ou do nariz), por meio de mãos contaminadas com excretas de roedores;
• transmissão pessoa a pessoa, relatada, de forma esporádica, na Argentina e Chile, sempre associada ao hantavírus Andes.

Diagnóstico e tratamento

Diagnóstico Laboratorial Específico
Atualmente, os exames laboratoriais para diagnóstico específico são realizados em laboratórios de referência. No Paraná, é realizado pelo Laboratório Central do Estado (Lacen-PR).

• ELISA-IgM: cerca de 95% dos pacientes com SCPH têm IgM detectável em amostra de soro coletada no início dos sintomas, sendo, portanto, método efetivo para o diagnóstico de hantavirose. A coleta de amostra deve ser feita logo após a suspeita do diagnóstico, pois o aparecimento de anticorpos da classe IgM ocorre concomitante ao início dos sintomas e permanecem na circulação até cerca de 60 dias após o início dos sintomas.
• Imunohistoquímica: técnica que identifica antígenos específicos para hantavírus em fragmentos de órgãos. Particularmente utilizada para o diagnóstico nos casos de óbitos, quando não foi possível a realização do diagnóstico sorológico in vivo. Observe-se que quando o óbito é recente possibilita a realização de exame sorológico (ELISA IgM), mediante coleta de sangue do coração ou mesmo da veia.
• RT-PCR: método de diagnóstico molecular, útil para identificar o vírus e seu genótipo, sendo considerado exame complementar para fins de pesquisa.

Tratamento

Forma prodrômica/inespecífica

O tratamento dos pacientes com formas leves da SCPH é sintomático. A hidratação, quando necessária, deve ser cuidadosa para evitar sobrecarga de volume. Rigoroso controle dos dados vitais dos parâmetros hemodinâmicos e ventilatórios é exigido para evitar desencadeamento ou agravamento do quadro cardiorrespiratório.
• SCPH: Nos pacientes com formas mais graves e com piora dos parâmetros hemodinâmicos e ventilatórios, preconiza-se a cuidadosa infusão endovenosa (EV) de líquidos, que, se excessiva, poderá precipitar o edema pulmonar. O manejo adequado do aporte líquido é o principal elemento terapêutico. O balanço hídrico é outro parâmetro de grande importância, necessitando controle da diurese, com sondagem vesical (não obrigatória) e da função renal. O volume de líquidos administrados EV deve ser suficiente para manter a pré-carga e assegurar um fluxo plasmático renal adequado, mantendo balanço hídrico negativo ou, pelo menos, igual a zero, para não aumentar o edema pulmonar. Precocemente, drogas cardiotônicas vasoativas devem ser introduzidas para manter as condições hemodinâmicas e prevenir o choque, como a noradrenalina, que permite utilização em solução concentrada, possibilitando baixo volume de infusão. Como segunda opção, deve ser utilizada a dopamina. A dobutamina deve ser reservada para os casos refratários, em associação com mais de uma droga vasoativa, quando há suspeita de queda do desempenho miocárdico, visto que o seu emprego isolado, na vigência de hipotensão arterial severa, pode precipitar arritmias cardíacas. Quando essas drogas não estiverem disponíveis, a adrenalina e a fenilefrina são empregadas como drogas de segunda escolha. Nos pacientes mais graves, há necessidade de suporte e monitorização hemodinâmica e ventilatória de forma contínua. Nos pacientes que necessitarem de aporte de oxigênio, esse deverá ser ministrado garantindo a saturação arterial de, pelo menos, 90%. Nos casos com insuficiência respiratória leve e quadro clínico estável, pode-se instituir a ventilação não invasiva precoce (BIPAP/CPAP). Os pacientes com desconforto respiratório mais acentuado e os que apresentarem saturação do O2 menor que 80%, com sinal de fadiga respiratória e radiografia de tórax compatível com Síndrome da Angústia Respiratória do Adulto (SARA) grave, deverão ser atendidos com assistência ventilatória invasiva (mecânica). Nessa condição, é necessário instituir PEEP entre 10 e 18 cm de H2O, na tentativa de diminuir o edema e o risco de sangramento pulmonar. A antibioticoterapia de espectro adequado deve ser instituída precocemente, uma vez que outras infecções pulmonares graves, por germes comunitários, incluindo os típicos, são diagnósticos diferenciais importantes. Ela deverá ser suspensa quando for estabelecido o diagnóstico laboratorial de SCPH, desde que não haja superinfecção secundária. Até o momento não existe terapêutica antiviral comprovadamente eficaz contra a SCPH.

Prevenção e controle

Antirratização

• Eliminar todos os resíduos, entulhos e objetos inúteis que possam servir para abrigos, tocas e ninhos de roedores, bem como reduzir suas fontes de água e alimento.
• Armazenar insumos e produtos agrícolas (grãos, hortigranjeiros e frutas) em silos ou tulhas situados a uma distância mínima de 30 metros do domicílio. O silo ou tulha deverá estar suspenso a uma altura de 40cm do solo, com escada removível e ratoeiras dispostas em cada suporte.
• Os produtos armazenados no interior dos domicílios devem ser conservados em recipientes fechados e a 40cm do solo. Essa altura é necessária para se realizar a limpeza com maior facilidade.
• Vedar fendas e quaisquer outras aberturas com tamanho superior a 0,5cm, para evitar a entrada de roedores nos domicílios.
• Remover diariamente, no período noturno, as sobras dos alimentos de animais domésticos.
• Caso não exista coleta regular, os lixos orgânicos e inorgânicos devem ser enterrados separadamente, respeitando-se uma distância mínima de 30 metros do domicílio e de fontes de água.
• Qualquer plantio deve sempre obedecer a uma distância mínima de 50 metros do domicílio.
• O armazenamento em estabelecimentos comerciais deve seguir as mesmas orientações para o armazenamento em domicílio e em silos de maior porte.
• Em locais onde haja coleta de lixo rotineira, os lixos orgânico e inorgânico devem ser acondicionados em latões com tampa ou em sacos plásticos e mantidos sobre suporte a, pelo menos, 1,5 metro de altura do solo.

Referências

·         BRASIL, Ministério da Saúde/Secretaria de Vigilância em Saúde/Departamento de Vigilância Epidemiológica. Guia de Vigilância Epidemiológica, 7ª Edição – Série A. Normas e Manuais Técnicos/Brasília, 2010.
·         C.R.Bonvicino, J. A Oliveira, P.S. D’Andrea. Guia dos Roedores do Brasil, com chaves para gêneros baseados em caracteres externos. Rio de Janeiro: Centro Pan-Americano de Febre Aftosa – OPAS/OMS, 2008.
·         FERREIRA, Marcelo Simão. Hantaviruses. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, v. 36, n. 1, p. 81-96, 2003.
·         PETERS, C. J.; SIMPSON, G. L.; LEVY, H. Spectrum of hantavirus infection: hemorrhagic fever with renal syndrome and hantavirus pulmonary syndrome.Annual review of medicine, v. 50, p. 531-545, 1998.
·         FIGUEIREDO, Luiz Tadeu M.; CAMPOS, Gelse Mazzoni; RODRIGUES, Fernando Bellissimo. Síndrome pulmonar e cardiovascular por Hantavirus: aspectos epidemiológicos, clínicos, do diagnóstico laboratorial e do tratamento. Rev Soc Bras Med Trop, v. 34, n. 1, p. 13-23, 2001.

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